domingo, 13 de março de 2011

A questão do molinismo (II)

“Tornou-se inevitável para os molinistas tender para uma mentalidade prática em que, a Bondade divina sendo propiciadora de graças iguais para todos, a resposta de cada um será o fator decisivo para uma sorte diferente, ganhando portanto especial relevo os esforços de cada um para se corrigir moralmente, para praticar as boas ações, para procurar agradar a Deus por sua iniciativa. Como no início da vida moral dos principiantes esses esforços morais são importantes já que, aí, a tarefa de corrigir defeitos, hábitos ou vícios morais mais grossos ganha uma acentuação significativa, a mentalidade prática originada da mentalidade teórica molinista espalhou-se sem dificuldade tendendo para ver o agrado de Nosso Senhor como a recompensa do good boy.
A idéia de que nossos esforços agradam a Deus e por isso Ele nos olha com simpatia parece uma idéia conforme a doutrina católica exposta de uma maneira simples. Todavia, ao longo dos séculos recentes, essa idéia implicou numa concepção de vida religiosa como um programa de esforços para a correção de defeitos abstratos segundo um entendimento abstrato dos mandamentos. Nem os párocos nem os fiéis se viam muito pessoalmente envolvidos pelas censuras ou recomendações que constituíam, habitualmente, a substância de sermões exigentes. Creio que todos serão testemunhas de que rarissimamente se encontrava um pároco cuja pregação mostrasse a sua própria admiração arrebatada pelas coisas do Reino de Deus, pela beleza da Revelação e cujas palavras deixassem transparecer involuntariamente e contagiassem os ouvintes com o fervor de sua caridade, como parece ter acontecido com o Pe. Emmanuel, segundo o relato que se tem do vigor da vida religiosa da sua pequena comunidade de fiéis da cidadezinha de Mesnil Saint-Loup, na França, em meados do século passado. Entre nós, quem ouvia falar de procura de santidade? Isso, segundo a mentalidade mais ou menos difundida até há pouco em toda a cristandade, era coisa para alguns poucos, alguns raros, confundindo-se assim os critérios que distinguem a santidade eminente dos altares – que, de fato, não devemos sequer desejar – e a santidade ao nosso nível escondido que é simplesmente obrigação nossa, pois se encerra no preceito da perfeição.
A nosso ver o molinismo trouxe consigo o esquecimento cada vez mais generalizado da procura dos sinais da Graça para inspiração e direção da alma do homem em sua vida espiritual. Isso implicou no esquecimento de todo o patrimônio espiritual que os grandes doutores místicos acumularam para a Igreja e por ela nos oferecem para nossa melhor compreensão das gestões de Deus em nossa alma. E não é mais possível continuarmos a ignorar tudo isso como se não tivéssemos nenhuma obrigação diante de tal tesouro. Como se os tempos extraordinários em que vivemos e em que recebemos graças também extraordinárias não nos impusessem a obrigação de combater para preservar a fé mas também aproveitar esse patrimônio para santificarmo-nos diante de Nosso Senhor.
O que aprendemos com os mestres tomistas e os doutores como São João da Cruz é que Nosso Senhor procura se comunicar conosco nas profundezas de nossas almas. Ele age em nós para purificar-nos do que o Salmo 18 chama de “pecados ocultos”. Ele nos retira da confortável situação de bons meninos em que recebíamos consolações sensíveis que nos estimulavam para os combates aos defeitos mais grossos, enquanto principiantes. Agora, o que Ele quer é que tomemos sobre nós Seu jugo (Mateus 11, 29). Ora, esse jugo é o jugo da direção efetiva de nossa vida espiritual e moral pela Sua graça, cujos sinais podemos aprender a distinguir. Porém aceitar esse jugo, como bem disse Gustavo Corção (Permanência nº 126-127), é para nós mais duro e difícil do que aceitar comer Seu Corpo e beber Seu Sangue; do que renunciar a bens deste mundo e até do que aceitar a própria cruz. A mentalidade molinista favoreceu uma cômoda noção de agir moral que permanece eternamente como uma coleção de imperativos: É preciso agir assim, fazer isso, evitar aquilo... ou Um católico não pode... Curiosamente, essa coleção de exigências como único alimento de nossas almas, além de ser mais ou menos impessoal para todos (razão pela qual fica confortável), vai se tornar uma espécie de símile católico da mentalidade kantiana que dominou o mundo laico a partir de meados do século passado. Também ele dirá aos católicos: “Isso de dizer que Deus é a origem de nossos atos bons é muito bonito, mas não podemos estabelecê-lo com certeza. Porém o que importa é que, efetivamente, o homem tem em si um mecanismo moral imperativo e categórico: é preciso fazer o bem, é preciso evitar o mal”. Esperamos que não seja preciso explicar que, realmente, é preciso evitar o mal e praticar o bem, mas não é aí que reside a divergência de pareceres. O que importa é que mais uma vez o universo leigo encontra um mecanismo que dispensa a afirmativa da origem em Deus de sua razão de ser e de sua finalidade, porque, na colocação católica, essa origem e essa razão de ser ficam formuladas de modo extrínseco à própria natureza do bem agir espiritual. Diferente será a concepção católica fundada no agir moral sob a direção efetiva e quotidiana da Graça divina. E é este, como dissemos, o jugo de Nosso Senhor que importa tomar sobre nós.
Quantas normas de vida espiritual são essenciais e nós as ignoramos pura e simplesmente. Nós não somos amáveis diante de Deus porque façamos esforços por agradá-lo e não é por isso que Ele nos ama. Ao contrário, é porque Ele nos amou primeiro que nós somos amáveis e temos amor e esforços aceitáveis para lhe oferecer. Por incrível que isso nos pareça, este é o mistério profundo da misericórdia divina. Não é porque façamos esforços terríveis ou soframos sofrimentos terríveis que temos méritos diante de Deus. Nada disso tem valor se não é de Deus a iniciativa primeira e até a direção de tais esforços e de tais sofrimentos. A noção católica de mérito consiste em agir conformemente ao que a Graça divina nos inspira e não em agir de maneira mais ou menos arbitrária por tomar em consideração uma concepção abstrata dos mandamentos. É por isso que tantas vezes nos surpreendemos com o resultado negativo de tanta coisa feita com boas intenções por iniciativas nossas talvez indébitas.
Quem compreende o quão importante é, para sua vida quotidiana, lançar sobre Nosso Senhor nossos cuidados, como ensina São Pedro (I, 5, 7) e o Salmo 54 e a Igreja pelos seus doutores místicos? Quem é que sabe que a direção geral de nossa vida espiritual deve ser regida pela procura da pacificação da alma (I Pedro, 3, 11) e que é por isso que é preciso lançar sobre Deus nossos cuidados, não para deixarmos de cumprir nossas obrigações, mas sim para, uma vez sabendo que as cumprimos, esquecermos aquilo que em geral não esquecemos: sairá tudo bem? Conseguirei o que quero? O perigo desaparecerá? E por quê? A enorme importância dessas normas reside no fato de que Nosso Senhor não nos fala no interior de nossas almas se não se encontra aí um ambiente pacificado, atento à força e à delicadeza de Sua voz.
Tudo isso esteve no esquecimento, o que se deve, a nosso ver (é minha opinião pessoal), à influência do molinismo, que ganhou relevância porque aos jesuítas, como indicamos anteriormente, foi confiada a direção da maioria dos seminários a partir da decisão de Gregório XIII.
Não é que julguemos que a situação teria sido diferente se os dominicanos tomistas tivessem, eles, dirigido os seminários. Como já dissemos, não nos interessam aqui gloriolas de partido. Lembramo-nos de que muitos historiadores da História da Igreja referem que os defensores de São Tomás nessa época não brilhavam pelo valor pessoal (com exceção de Caetano que é anterior à querela), embora brilhassem pela fidelidade a São Tomás. Mas, sobretudo, dizemos isso porque temos bem presente que, quando chegou para nós a mais terrível tragédia de toda a História da Igreja que é aquela que temos hoje diante dos olhos, melaram-se todos eles igualmente, jesuítas, dominicanos, beneditinos e franciscanos. Entre os jesuítas e dominicanos, especialmente, houve uma competição ativa para verem quais chegariam a piores abjeções.”
(Júlio Fleichman, Itinerário Espiritual da Igreja Católica)