quarta-feira, 30 de novembro de 2016

O Putsch da misericórdia

"Bergoglio foi levado ao balcão das bênçãos pelos que pensavam que havia chegado o momento de afundar finalmente a barca de Pedro. Para o povo de Deus bastou que lhe atirassem sem custo algum os amendoins da demagogia, aquela demagogia que depois do sessenta e oito comoveu as classes média e alta seduzidas pelo pobre fingido. O amor masoquista dos sacerdotes conciliares aos inimigos oficiais da Igreja de Cristo devia ser finalmente correspondido. Assim, cada maitresse à penser de Reppublica e arredores podia gritar ao mundo que a Igreja morreu e depois viva a nova Igreja!, por definição outra em relação à anterior: exilado um Papa, cria-se uma nova Igreja.
Mas em que consiste a nova Igreja, já não mais católica romana? É a que deve conquistar a primazia superando inclusive o protestantismo para pôr-se ao serviço e a reboque do século. Precisamente ao serviço da onda que está arrasando uma civilização junto com sua religião, depois da aniquilação da filosofia e da estética. Só a moral havia sobrevivido por algum tempo à filosofia e à estética por estar ligada ao espírito de sobrevivência da sociedade e dos indivíduos. A Igreja oficial com seu Magistério tratava de manter com vida a moral cristã, por muito debilitada que esta estivesse. Bento XVI advertiu: se se abandonam os princípios e se substituem pela liberdade do nada e de seu horror, não se salvará ninguém. Havia lançado o último alarme antes que se deflagrasse a guerra. Os princípios foram suprimidos, substituídos pela liberdade do nada, para o nada e para seu horror.
O sínodo da família foi estabelecido por Bergoglio como assembléia constituinte com a tarefa de decretar o fim da Igreja católica, com o repúdio de seu ensinamento a partir da moral da família. O programa desta morte anunciada está todo detalhado no parágrafo 9 da Relatio final do sínodo de 2014, que passou a ser a base para o sínodo definitivo de outubro próximo. Merece uma leitura cuidadosa. Lemos que se deve ter em conta principalmente isto: "... os indivíduos têm uma maior necessidade de cuidarem de si mesmos,... de se conhecerem interiormente, de viverem mais em sintonia com suas próprias emoções e seus sentimentos, de buscarem relações emocionais de qualidade", pelas quais "esta legítima aspiração pode estimular o desejo de comprometerem-se na construção de relações de doação e reciprocidade criativas, responsáveis e solidárias como as familiares", "... o desafio para a Igreja é o de ajudar os casais no amadurecimento da dimensão emocional e no desenvolvimento afetivo..."; e mais adiante, no parágrafo 10 – que em homenagem às bandeiras mencionará pelo menos o amor conjugal – se expressa a queixa de que "muitos tendem a permanecer nos estágios primários da vida emocional e sexual".
O alcance desta passagem representa provavelmente o verdadeiro manifesto da nova igreja de Bergoglio, que não tem mais nada que ver com a teologia e a moral católica. É o verdadeiro manifesto de uma revolução que deve ser proclamada oficialmente. Aquela que suprime a alma e consagra ao ídolo da matéria.
Quando Jesus se encontra com a mulher adúltera, não lhe pergunta qual foi o "caminho" psicológico que a conduziu à traição de seu marido, quais foram as pulsões e as emoções pelas quais se deixou levar. Não faz indagações psicológicas, mas diz-lhe simplesmente: "vai-te e não peques mais". Ordena-lhe recorrer à vontade e orientá-la pelos caminhos do bem. Fala do pecado que supõe a transgressão do mandamento divino. Fala ao espírito da mulher porque o homem, feito à imagem e semelhança de Deus, tem a capacidade de reconhecer o bem e é suscetível a persegui-lo: tem a sabedoria dada por Deus e a vontade para fazê-la frutífera. A transgressão ocorre quando o homem, por soberba, pensa alcançar uma sabedoria superior à que lhe foi dada e ordenar sua própria vontade numa direção oposta à desejada por Deus Criador e revelada por Jesus à consciência do homem individual.
Assim à Igreja foi dada a tarefa de perpetuar a paidéia cristã voltada à salvação da alma através da busca do bem que conduz à virtude e à felicidade duradoura, a despeito das tentações e da tirania da matéria. A Igreja a isto se dedicou durante séculos, apesar das insuficiências e das quedas de seus homens.
Mas eis que na visão do programa sinodal não há nada de tudo isto. Não há nenhuma indicação do bem a realizar e do mal que se deve evitar, da direção que se deve dar à vontade. Não consta a preocupação pela salvação das almas, mas pelo bem-estar dos corpos e das mentes. Não há um apelo à razão humana conformada ao logos divino revelado por Cristo, mas sim a atenção obsequiosa ao irracional que, abandonado a si mesmo, torna-se a anti-razão capaz de iluminar monstros. A Igreja teria que ensinar aquilo que os discípulos já sabem fazer muito bem por si mesmos: secundar impulsos, buscar emoções, trocar o bem pelo bem-estar, deixar de lado a razão e dar lugar precisamente ao irracional, como sugerem os sofistas anteriores a Sócrates e como prega o relativismo moderno. Por outra parte, inclusive fora de um ponto de vista religioso, dever-se-ia recordar com Jaspers que "rebelando-nos contra a razão, eludimos o elemento dialético de reflexão e tornamo-nos bárbaros no sentido grego da palavra, quer dizer, homens que falam uma linguagem sem sentido. Para este tipo de irracionalidade valem as palavras de Mefistófeles: 'despreza saber e razão, faculdades supremas do homem, deixa que o espírito de mentira te enrede cada vez mais em obras de falsidade e de feitiço, e eu já te terei em minhas mãos'".
Certamente a barbárie pós-moderna não precisava de estímulos "pastorais". Para ela trabalham o tempo todo movimentos homossexuais, pornografia e blasfêmia, Marco Pannella e Bill Gates, Elton John e a OMS, o abortismo de qualquer cor, a cultura da morte. Os frutos mais recentes são aqueles inomináveis daquele tipo genial que através da inseminação artificial pôde produzir a gravidez de sua mãe. Sem ter todavia o impulso – o que seria benéfico para ambos – de cegar-se com suas próprias mãos como o inculpável Édipo. E no entanto, e apesar de tudo isto, segundo a visão do mundo propagada por Bergoglio e outros marcianos (no sentido de "aquartelados em Santa Marta"), a Igreja não deve ensinar o que é objetivamente bom, os comportamentos não devem estar orientados ao que é bom para todos e que poderia ser irradiado por todos, mas devem voltar-se à satisfação de todas as forças que correspondem à subjetividade irracional do homem, ao mundo das pulsões e das emoções, a única lente com a qual ler a realidade para adaptá-la às próprias particulares exigências. É evidente que neste ambiente não há lugar para nenhuma outra norma que guie as ações humanas e ofereça inclusive um critério objetivo de juízo.
Por outra parte a massa festiva, faminta dos amendoins demagógicos, parece também totalmente inconsciente do que está acontecendo e incapaz de prever o que se vai passar, entre o ruído da mídia e as vozes persuasivas daqueles sacerdotes que se sentem também felizmente liberados.
Mas alguns na Igreja, assim como entre os fiéis, perceberam a traição ao Evangelho e a sua Igreja milenar, e não querem ser partícipes. Alguns não temem falar alto e claro. São homens que não se deixam intimidar pelas prepotências patronais nem pela indolência de seus irmãos, e muito menos pela propaganda de regime clérigo-comunista. Assim, o resultado do sínodo poderia ser tido como menos certo do que se tentou arranjar. Eis aqui, então, o golpe. Eis aqui a idéia formidável de outorgar veste sacra ao programa político revolucionário. Basta colocá-lo na forma solene do jubileu. Aquele que ocultará, inclusive aos desconcertados e aos ignorantes ou confundidos, a subversão da missão da Igreja sob uma carga de pathos religioso. A misericórdia de Bergoglio, a anistia geral com cancelamento retroativo do pecado, tem que ter uma veste teológica e sacra capaz de aniquilar qualquer resistência.
Para as religiões primitivas a exaltação mística representava também a sublimação do irracional e da carnalidade. O jubileu da misericórdia de Bergoglio aponta para a sublimação dos novos ritos da modernidade assumidos como ritos da nova Igreja do terceiro milênio, ecumênica, atéia e popular, e produzirá pela força mesma das coisas sua consagração definitiva. Um Vangi qualquer poderá forjar à sua maneira a estátua da nova misericórdia para colocar no lugar do São Pedro que abençoa.
A monarquia papal já foi substituída, em meio à indiferença geral, pela ditadura papal. Uma vez dissolvida a assembléia constituinte, se verá. Bergoglio diz ter pouco tempo. Mas não porque, como alguns pensam, já esteja avançado em anos. Pensa ter pouco tempo porque a revolução, para ser eficaz, deve jogar com o fator surpresa e talvez, no intento de domesticar os fiéis e de acostumá-los a tudo, se tenha abusado um pouco das surpresas, e até a náusea. Há pouco tempo porque a resistência, já preparada para o pior, quiçá se esteja organizando, e os frutos da nouvelle vague vaticana começam a parecer demasiado onerosos até para os simpatizantes de primeira hora.
Se as resistências forem rapidamente neutralizadas, depois com a misericórdia que tudo libera, que abre as portas da moral cristã à criatividade do século, todos se sentirão ébrios e liberados. Poder-se-á inclusive derrubar a basílica vaticana como se fez com a Bastilha, embora faça já tempo, ainda ali, que não haja quase ninguém para defendê-la. Enquanto isso, o Jubileu da Misericórdia se anuncia como a Declaração de Direitos de 89: dos que hoje se tornaram, sob renovados despojos, a carta de suicídio de uma civilização."
(Patrizia Fermani, Il Putsch della Misericordia)